2 O lobo e o cordeiro: texto, tradução, análise

2 O LOBO E O CORDEIRO
TEXTO, TRADUÇÃO, ANÁLISE

Lobo uivando. Imagem: Sketchfab_User ariadams (com alterações).

Nesta seção, apresentaremos o texto e a tradução da fábula “O Lobo e o Cordeiro”, tanto a de Esopo quanto a de Fedro. Além disso, analisaremos as caraterísticas estilísticas de cada autor e, em seguida, apresentamos uma análise comparativa entre os mesmos.

2.1 Esopo

Λύκος καὶ Ἀρήν

Λύκος θεασάμενος ἄρνα ἀπό τινος ποταμοῦ πίνοντα, τοῦτον ἐβουλήθη μετά τινος εὐλόγου αἰτίας καταθοινήσασθαι. Διόπερ στὰς ἀνωτέρω ᾐτιᾶτο αὐτὸν ὡς θολοῦντα τὸ ὕδωρ καὶ πιεῖν αὐτὸν μὴ ἐῶντα. Τοῦ δὲ λέγοντος ὡς ἄκροις τοῖς χείλεσι πίνει καὶ ἄλλως οὐ δυνατὸν κατωτέρω ἑστῶτα ἐπάνω ταράσσειν τὸ ὕδωρ, ὁ λύκος ἀποτυχὼν ταύτης τῆς αἰτίας ἔφη. “Ἀλλὰ πέρυσι τὸν πατέρα μου ἐλοιδόρησας” Εἰπόντος δὲ ἐκείνου μηδὲ τότε γεγενῆσθαι ὁ λύκος ἔφη πρὸς αὐτόν. “Ἐὰν σὺ ἀπολογιῶν εὐπορῇς ἐγώ σε οὐχ ἧττον κατέδομαιj”
Ὁ λόγος δηλοῖ ὅτι οἷς ἡ πρόθεσίς ἐστιν ἀδικεῖν παρ᾿αὐτοῖς οὐδὲ δικαία ἀπολογία ἰσχύει

Um Lobo e um Cordeiro

Um lobo, ao ver um cordeiro que bebia de um rio, quis devorá-lo com uma causa lógica. Por isso, estando do lado de cima, o acusou de estar turvando a água e o impedindo de bebê-la. Tendo respondido, o cordeiro diz que bebia com a ponta do focinho e que, além disso, estando na parte de baixo, ele não podia turvar a água da parte de cima. O lobo, não conseguindo este seu intento diz: “Mas no ano passado tu insultaste o meu pai”. Quando aquele cordeiro falou que naquele tempo ainda não tinha nascido, o lobo disse a ele: “embora tu consigas defender-te, eu não deixarei de te devorar”.

O discurso mostra que para aqueles cujo plano é praticar a injustiça, nem uma defesa justa se mantém.

2.2 Fedro

Lupus et Agnus

Ad rivum eundem lupus et agnus venerant siti compulsi; superior stabat lupus longeque inferior agnus. Tunc fauce improba latro incitatus iurgii causam intulit. “Quare”, inquit, “turbulentam fecisti mihi aquam bibenti?” Laniger contra timens: “Qui possum, quaeso, facere quod quereris, lupe?
A te decurrit ad meos haustus liquor”.
Repulsus ille veritatis viribus: “Ante hos sex menses male” ait “dixisti mihi”. Respondit agnus: “Equidem natus noueram”. “Pater hercle tuus” ille inquit “male dixit mihi”; atque ita correptum lacerat, iniusta nece.

Haec propter illos scripta est homines fabula,
Qui fictis causis innocentes opprimunt.

O Lobo e o Cordeiro

Para o mesmo rio, o lobo e o cordeiro tinham vindo impelidos pela sede. Mais acima, de pé, estava o lobo, e muito mais abaixo o cordeiro. Então, o ladrão, incitado pela goela ímproba, apresentou a causa do litígio. “Por que”, diz, “fizeste turva a água, a mim que bebo?” O Lanígero, de outra parte, temendo perguntou: “Como posso fazer o que te queixas, ó lobo? O líquido decorre de ti para os meus goles”. Aquele, repelido pelas forças da verdade disse: “Antes destes seis meses falaste mal de mim”. O cordeiro respondeu: “Na verdade, eu não tinha nascido”. Aquele disse, “Por Hércules! Teu pai falou mal de mim”; e assim dilacera o arrebatado com morte injusta.

Esta fábula foi escrita por causa daqueles homens que oprimem os inocentes com causas fictícias.

2.3 Estilo de cada autor

Passemos, agora, aos estilos adotados por Esopo e por Fedro.

2.3.1 Esopo: “Λύκος καὶ Ἀρήν”

Esopo, em sua fábula, já nos apresenta o lobo na qualidade de sujeito, como aquele que é o verdadeiro agente das suas ações, e que não é movido por outros, mas ele próprio impõe suas vontades e desejos, ele é Λύκος, que nos é descrito como um sujeito indeterminado, tendo em vista a ausência do artigo definido; por outro lado, o cordeiro nos é descrito como o objeto das ações do lobo: ἄρνα, se encontra no acusativo grego, sendo o foco das atenções do esfaimado animal.

Com efeito, a primeira ação do lobo será a de ver o seu objeto de desejo, como indica o particípio aoristo médio θεασάμενος (vendo); a forma participial πίνοντα (que bebia), que é adjetivo do acusativo ἄρνα, que compõe a oração adjetiva e que nos explica o que o cordeiro fazia, no exato momento, em que estava sendo visto pelo lobo. Ainda dentro da oração adjetiva, o adjunto adverbial ἀπό τινος ποταμοῦ (de um rio) nos indica o lugar de onde o cordeiro saciava sua sede. Então, é a esse cordeiro, que bebia de um rio, que o lobo vê, e concomitante deseja algo, como nos indica o aoristo passivo ἐβουλήθη (quis).

Desse modo, temos aqui uma relação temporal com ações que se dão ao mesmo tempo, e aquilo que o lobo deseja fazer com o cordeiro nos é indicado pelo verbo no infinitivo aoristo passivo καταθοινήσασθαι (devorar), que aqui, sintaticamente, exerce a função de complemento do verbo de vontade ἐβουλήθη (quis).

Assim, o lobo desejou ter o cordeiro por banquete, quis devorá-lo, como podemos ver o cordeiro sendo retomado pelo pronome demonstrativo τοῦτον [27] . Mas, para realizar o seu intento, o lobo não poderia fazê-lo assim do nada, sem motivo algum, quis se valer de uma razão, de uma causa que fosse razoável, lógica, esse seria o modo pelo qual o lobo gostaria de tornar real a sua vontade, como nos aponta o adjunto adverbial de modo μετά τινος εὐλόγου αἰτίας (com uma causa lógica). E aqui estamos diante de conceitos propriamente gregos como, αἰτία (causa), εὐλόγος (razoável, lógico), que seriam tratados dentro da filosofia. No entanto, apesar de o lobo querer fazer uso de uma causa que fosse razoável, na verdade, será de uma forma ilógica que ele irá atuar, como podemos ver dentro da oração causal iniciada pela partícula Διόπερ, pois embora o lobo estivesse do lado de cima (στὰς ἀνωτέρω) começou a acusar o cordeiro (ᾐτιᾶτο αὐτὸν), que estava do lado de baixo (κατωτέρω ἑστῶτα), de turvar a sua água. Assim, aquele que quis fazer uso da razão não conseguiu o seu intento (Ὁ λύκος ἀποτυχὼν ταύτης τῆς αἰτίας) e ainda se viu acuado pelo bom uso da razão por meio da qual o cordeiro fazia, ao refutar de forma razoável e lógica as posições ilógicas do lobo. Assim, tendo o lobo fracassado no uso da razão e reconhecendo a boa defesa feita pelo cordeiro, será com o uso da força que a fera executará o que tanto tinha desejado.

Desse modo, Esopo estrutura de tal forma a sua fábula, defendendo a ideia de que quando alguém já tiver pensado em praticar um plano injusto, mesmo que o outro apresente argumentos razoáveis, o primeiro faz prevalecer a sua vontade. É assim que o lobo aparece!

E, por fim, destacamos, na fábula “Λύκος καὶ Ἀρήν”, de Esopo, algumas análises de casos mais relevantes. Assim, sublinhamos o genitivo de origem ἀπό τινος ποταμοῦ (de um rio); o genitivo de causa μετά τινος εὐλόγου αἰτίας (com uma causa lógica); os genitivos absolutos Τοῦ δὲ λέγοντος (tendo ele respondido), Εἰπόντος δὲ ἐκείνου (tendo aquele falado); o dativo de instrumento ἄκροις τοῖς χείλεσι (com a ponta do focinho); o dativo de interesse οἷς ἡ πρόθεσίς ἐστιν ἀδικεῖν (para aqueles que o plano é injusto); o dativo de companhia παρ᾿αὐτοῖς (junto dos quais) e o acusativo de direção ἔφη πρὸς αὐτόν (disse a ele). Quanto à métrica, as fábulas de Esopo eram compostas em versos iâmbicos, pois, como já nos informava Maria Helena na Rocha Pereira [28] : “o iambo estava muito próximo do ritmo da linguagem falada e se prestava especialmente a traduzir atitudes simples e naturais”.

2.3.2 Fedro: “Lupus et agnus”

No que se refere à fábula “o Lobo e o cordeiro”, de Fedro, ressaltamos o fato de que já no seu início há uma ideia de rivalidade, como atestamos, nos sintagmas iniciais. Na abertura da fábula, Fedro nos diz que o lobo e o cordeiro vêm ad rivum eundem (ao mesmo rio) . Com efeito, será esse vocábulo latino rivum (riacho) que dará em português, por exemplo, os termos rival, rivalidade e seus derivados. Mas, essa rivalidade entre o lobo e o cordeiro não se manifestaria enquanto eles estivessem sendo movidos por um mesmo desejo. Ambos vão ao mesmo rio, levados por um mesmo impulso, como indica o sintagma siti compulsi (“impelidos pela sede”) no qual há o ablativo siti (“pela sede”), exercendo a função de agente da passiva do particípio passado, compulsi (“impelidos”) .

Desse modo, a rivalidade, a oposição entre ambos, viria, à tona, apenas quando os impulsos começassem a divergir. Com efeito, é o que vai acontecer, e a marca dessa divergência será dada pela conjunção temporal tunc (“então”). Ou seja, o tunc assinala o tempo em que o que ainda não tinha acontecido até aquele dado momento a partir de então passaria a acontecer. Desse modo, a rivalidade seria acentuada diante da divergência dos impulsos. O lobo que, até então, estava sendo impelido pela sede ( siti compulsi) , como também o cordeiro o estava, passaria agora a estar incitado pela goela ímproba ( foce improba latro incitatus).

Aqui vale ressaltar essas personificações utilizadas por Fedro nos agentes da passiva, em que impulsos e desejos, personificados, assumem atitudes que são próprias de seres humanos. Assim, não são o lobo e o cordeiro que têm sede, mas eles são impelidos por ela; do mesmo modo, não é o lobo que tem fome, mas ele é incitado pela goela ímproba. Dessa maneira, a divergência será estabelecida. O ladrão apresenta, então, a causa do litígio ( latro incitatus iurgii causam intulit ) e inventa que a turbulência da água por parte do cordeiro o impede de saciar a sede.

Outro aspecto, que vale a pena ser considerado, é essa forma como os personagens da fábula são caracterizados: Fedro chama o lobo de latro (ladrão), adjetivo que não seria o mais comum para determinar um animal, senão pessoas. Nesse sentido, parece que Fedro está atribuindo a um animal um vício, que se faz presente nos homens; por outro lado, o cordeiro vem determinado por Fedro como lanígero, belo exemplo de sinédoque que o caracteriza.

Então, tendo sido apresentada a causa do litígio, a oposição está, assim, estabelecida. Desse modo, definida a relação entre o lobo e o cordeiro, Fedro os distribui colocando o lobo, na parte superior; e o cordeiro, de longe, na parte inferior. O advérbio longe (“de longe”), demarca lugar, sinaliza como Fedro quis ressaltar a distância entre ambos. Eles não estavam perto, mas sim longe. Podemos também constatar que o fabulista propositadamente faz uso das palavras superior e inferior , que no português vieram com a mesma estrutura linguística. Nelas já implicitamente configura-se essa ideia de poder, de quem está mais acima e de quem está mais abaixo. Assim, o autor não está apenas fazendo a descrição de um espaço geográfico, mas está querendo dizer que há uma relação existencial, que esses dois animais têm e passam a ter entre si. O lobo é superior, o cordeiro, inferior e nessa condição de superioridade o lobo vai oprimir o cordeiro.

Assim, a primeira tentativa de opressão por parte do lobo vai dar-se pelo uso da palavra, quando o ladrão apresenta a causa do litígio, mas “ele será repelido pelas forças da verdade” ( Repulsus ille veritatis viribus ), tanto numa primeira, quanto numa segunda tentativa. Estaria Fedro dizendo que os que fazem uso da força não sabem argumentar? Vencido pelas forças da verdade, o ladrão faz uso da força física de modo que o cordeiro foi dilacerado, arrebatado com morte injusta.

Algumas análises de casos merecem ser sinalizadas, como, por exemplo, o ablativo de origem em a te decurrit (“de ti decorre”), o acusativo de movimento de lugar para onde em ad meos haustus (“aos meus goles”). Os ablativos de meio em ueritatis uiribus (“pelas forças da verdade”) e fictis causis (“por meio de causas fictícias”) e o ablativo de modo em iniusta nece (“com morte injusta”).

Outro aspecto que destacamos é hercle , utilizado pelo lobo, que “é uma expressão de juramento muito comum entre a plebe romana. Os homens quase sempre juravam “por Hércules” e as mulheres “por Castor””, como nos informa Maximiano Gonçalves [29] . Vale, por fim, ressaltar que a métrica utilizada por Fedro é o senário iâmbico, como ele mesmo discorre, no prólogo de suas fábulas: Ego polivi versibus senariis hanc materiam quam Aesopus auctor repperit (“eu poli, em versos senários, esta matéria que Esopo autor descobriu”) . Quanto a isso, Louis Nougaret [30] nos informa que Fedro faz uso de tal métrica, “possivelmente para acentuar assim o caráter familiar de suas narrativas” e os versos são constituídos assim: podem ter como pés espondeu (˗ ˗), dátilo (ˉ ̆ ̆ ), anapesto (˘ ̆ ˉ) ou tríbaco ( ̆ ̆ ̆ ) nos lugares pares e ímpares, mas devem terminar com um iambo ( ̆ ˉ) [31] .

2.4 Análise Comparativa

Nas fábulas homônimas “O lobo e o cordeiro” de Fedro e de Esopo, podemos afirmar que a estrutura foi similar: presença de animais, de seres irracionais, que pensavam, sentiam, agiam e falavam como se fossem seres humanos. Dessa maneira, a escolha dos animais foi significativa para o aspecto moralizante que pretenderam conceder, para o ensinamento também pretendido. Assim, o lobo, por um lado, se apresenta como símbolo da força e do poder, ao passo que o cordeiro reflete a fragilidade, a inocência e a pureza de vida e de coração. Desse modo, valendo-se desses animais, cada autor procurava explicar certos comportamentos ou sentimentos humanos ou mesmo satirizar certos grupos políticos da época, que utilizam do seu poder para oprimir os mais fracos. Não é demais ressaltar que, por causa dessa relação entre força e fraqueza, presente nesses animais, em torno deles foram criados alguns provérbios, tais como: “Ele é um lobo em pele de cordeiro”, para dizer, acerca da falsidade de uma pessoa; ou o tão conhecido: “Como um cordeiro no meio de lobos”, para se referir àquelas pessoas que se encontram no meio de perigos.

Assim esses autores, cada um ao seu modo, compartilham o pensamento comum de que os poderosos de suas épocas se valem de sua autoridade de forma autoritária para conquistarem seus objetivos.

2.5 Notas de rodapé

  1. τοῦτον, cujo nominativo é οὗτος, designa aquilo que se fala ou que se acabou de falar.

  2. PEREIRA, M.H.R., Estudos de história da cultura clássica , vol. I, p. 210.

  3. GONÇALVES, M.A., Tradução das Fábulas de Fedro , p. 32.

  4. NOUGARET, L., Trairé de Métrique Latine Classique , p. 95.

  5. RAVIZZA, J., Gramática Latina , p. 421.